Enquanto todos
tentam viver suas vidas dentro de uma previsível normalidade, de repente o
baque: mais um atirador irrompe ceifando vidas. O cenário não poderia ser mais
emblemático, uma sala de cinema lotada. A violência fictícia do filme, realçada
pelos efeitos 3D, fica ainda mais palpável e mortal. Salta da tela para a vida
real, abreviando-a, abreviando os sonhos daqueles que ali estão. A cada
episódio como este do Colorado, a pergunta que todos se fazem é: por quê?
A sociedade
americana e seu estilo de vida, impostos ao resto do mundo via cinema, música,
jogos eletrônicos e uma infinidade de outras formas, representa a essência
daquilo que se conhece por capitalismo e por um individualismo extremado. A
competição e a pressão para alcançar o sucesso pessoal e profissional parecem
não ter limites. Nesse contexto insano, a ideia de que todos pertencemos a um
grupo social ou comunidade fica esquecido e passa a valer a lei do “cada um por
si”. Um levantamento recente apurou que cerca de 25% dos americanos moram sós.
São cidades imensas, agregando multidões de solitários individualistas que
encaram a vida como uma guerra pela sobrevivência. Ter sucesso na vida,
prestígio, dinheiro e reconhecimento social são metas que devem ser atingidas a
qualquer preço, literalmente. Alguns não suportam a pressão e desistem, cometem
suicídio ou ainda optam por eliminar literalmente o maior número de
“concorrentes” possível.
Torna-se algo
revelador a constatação de que tais atos são comumente perpetrados por
indivíduos da classe média, bem posicionados na escala social, com sólida
formação acadêmica e geralmente possuidores de um QI acima da média. Talvez
inconformados com sua condição, ao perceber que a vida não está seguindo o rumo
esperado ou então que está demorando demais para chegarem ao topo,
repentinamente decidem extrapolar, jogam tudo para o alto e cometem uma
loucura. Nos dias que antecedem os massacres, muito provavelmente o limite
entre a vida real e as tantas realidades fictícias experimentadas por meio de
filmes ou jogos, desaparece. Ficção e realidade podem passar a ser uma mesma
coisa, quando a primeira ocupa a mente das pessoas por tempo demais,
tornando-se uma obsessão. Quase como um vulcão adormecido que fica lá, em hibernação,
só aguardando o momento adequado para entrar em erupção.
Quando isso
acontece, vidas são tiradas sempre de forma violenta e cruel, sem chances para
fugas. Os massacres costumam ser cuidadosamente pensados para matar o maior
número possível de pessoas. Na sociedade contemporânea, estamos habituados a
sentir medo quando sozinhos, porém na companhia de um grande grupo ou multidão,
o medo desaparece e passamos a sentir uma enganosa sensação de segurança. Um
ambiente escuro e cheio de gente, como uma sala de cinema, pode ser o lugar
ideal para dar vazão a todos os sentimentos de raiva e frustrações represadas
numa mente desequilibrada e doentia.
Os vilões dos
filmes, com suas máscaras assustadoras, sua maquiagem pesada e suas expressões
de indiferença frente ao sofrimento alheio, podem sair da ficção e adentrar o
mundo em que vivemos sem aviso. Para piorar ainda mais a situação, não há como
prever quando ou onde acontecerá, muito menos que pessoas podem ter propensão
para cometer tais barbaridades. Parece não haver um perfil padrão que possa vir
a ser monitorado. O limite entre ficção e realidade desaparece gradativamente à
medida que o mundo da virtualidade se amplia. Como já dizia a filósofa alemã
Hannah Arendt, o inferno deixou de ser um lugar imaginário ou mitológico para
ocupar o mundo real. O inferno pode estar bem ali, entre as árvores do parque,
na rua que nos leva todo dia para o trabalho, num jardim florido e até numa
sala de cinema.
Um comentário:
Quanto tempo que não passava por aqui, parabéns pelo blog. ^^
Tenho uma pergunta: em qual obra Hannah Arendt disse isso sobre o "inferno"?
E ainda, diante do teor do texto e do incidente que o motiva, tenho uma sugestão: os filmes de Michael Haneke.
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