sexta-feira, 21 de abril de 2017

"Baleia Azul": nosso barco à deriva



Em seu último livro, o Sociólogo italiano Domenico de Masi atesta que "a desorientação é o maior mal do nosso tempo". Neste mundo pós-industrial dominado pela tecnologia e pela conectividade 24 horas, perdemos a referência e a noção do que seja o certo e do que seja o errado, do bom e do ruim, do belo e do feio, do saudável e do prejudicial, do necessário e do supérfluo.
Estamos tão escravizados pela tecnologia que já nos esquecemos de falar e de conviver com aqueles que estão mais próximos de nós; preferimos gastar nosso tempo falando com quem está longe, digitando intermináveis mensagens de texto ou voz. Por mais paradoxal que possa parecer, estamos sempre online no celular ou computador, mas offline para a vida. Esquecemo-nos de viver, de sorrir, de sentir o calor de um abraço. Embora muitos sejam contrários a essa ideia, a verdade é que a humanidade vem continuamente se desumanizando, se esvaziando das características mais fundamentais daquilo que significa ser HUMANO.
Os perigos e criminosos que costumávamos temer, hoje não se restringem mais às ruas e becos escuros: estão do outro lado da telinha luminosa, esperando para dar o bote, certos de que o isolamento e a "doença da falta de amor", que hoje acometem tantas crianças, jovens e até adultos, serão seus maiores aliados. O "joguinho da baleia azul" não é a CAUSA de algo, mas a CONSEQUÊNCIA. Quando nossos jovens não têm mais a referência clara do que seja uma família amorosa, um objetivo definido, um futuro que pareça ao menos acolhedor, muitas vezes a vida pode sim se tornar um fardo, um peso talvez grande demais para carregar. Mesmo que a vida não tenha um sentido em si, é preciso que ela tenha um significado para QUEM VIVE, que haja uma perspectiva, um direcionamento. Sobretudo, acredito eu, todo ser humano precisa sentir-se útil, sentir-se amado, sentir que o mundo precisa dele, caso contrário a vida pode passar a ser um castigo e o pensamento de livrar-se dela cedo ou tarde surgirá.
É dentro desta lógica que os tais "curadores" montam seus desafios perversos e assassinos, pois chega um ponto em que aquele que se sente rejeitado e deslocado no mundo passará a aceitar a atenção e as "palavras amigas" de QUALQUER UM. Neste mundo de correrias, do "dorme-acorda-trabalha-dorme-acorda-trabalha" sem fim, grande parte dos adultos já deixou de se sensibilizar com o mundo e mesmo com seus semelhantes. Vive-se mecanicamente, sempre em função da próxima tarefa a ser cumprida, da fatura que vence amanhã, do bem material que desejo adquirir para poder "ser feliz". Parece que tudo de valor que possuímos são as coisas materiais, palpáveis; os bens imateriais como a confiança, o otimismo, a amizade e o amor estão relegados ao segundo plano, sempre mencionados nas reuniões de família e nas felicitações de aniversários, mas muito pouco praticados.
O individualismo e o egoísmo são os sentimentos que comandam boa parte das ações em curso no mundo diariamente. A internet e as redes sociais, que supostamente deveriam unir mais as pessoas, na verdade facilitam o contato entre elas, mas as desune por meio dos preconceitos, das ideias prontas e fáceis, do ódio. Mesmo a 30 ou 50 anos atrás, a adolescência nunca foi uma fase fácil da vida, pois é o momento em que surgem tantas dúvidas, tantos medos, tantas possibilidades dentre as quais será preciso escolher supostamente "a melhor", a "mais correta". O problema é que a 50 anos o que acontecia na minha casa, na minha rua ou na minha escola, ficava confinado ali, somente as pessoas mais próximas tomavam conhecimento. Hoje, a privacidade simplesmente não existe mais. Se meu relacionamento acabou, se sofri bullying de colegas, se fui abusado(a), se minha família está se despedaçando, pais se separando, brigas, se me declarei gay/lésbica; todos esses fatos serão conhecidos e sabidos pela cidade inteira DENTRO DE POUCOS MINUTOS. Todas as pessoas que conheço, todos os grupos de what's app de que faço parte saberão disso, então o impacto é muito maior na vida das pessoas, as consequências são maiores, e alguns indivíduos, já bastante fragilizados, não conseguirão suportar todo esse peso em suas costas sem ajuda.
Por tudo isso, é preciso ter muito cuidado antes de julgar o outro ou elaborar piadinhas sobre o assunto. Para além da superfície existe muita coisa sobre a vida do outro que desconhecemos. Quem somos nós para julgar? Não há como generalizar, cada caso é um caso, cada indivíduo apresenta suas particularidades, seus problemas, sua trajetória única de vida, que o trouxe até aquele momento de desespero e de desamparo. É preciso haver diálogo, debates, orientação. É preciso sim falar sobre o assunto, jamais esconder, varrer para debaixo do tapete, como se o problema nem existisse. Boatos não matam pessoas, e sabemos que jovens estão morrendo, muitos estão internados, sendo atendidos neste exato momento por médicos e por psicólogos.
O fenômeno nefasto da baleia azul não é o primeiro dessa natureza, nem será com certeza o último. Num mundo onde filhos mandam matar os pais, pais e mães mandam matar seus filhos e balas perdidas ceifam vidas todos os dias, precisamos estar preparados para coisas ainda piores. O mundo virtual é um reflexo do mundo real, da sociedade doentia e apodrecida que a sociedade humana se tornou. O nosso barco, o barco da nossa vida quebrou seu leme; navegamos sem direção por aí, desorientados, desamparados e desesperados. É preciso encontrar um rumo, um norte, uma mão amiga talvez, que nos mostre o caminho. Enquanto seguirmos do jeito que estamos, o oceano da nossa existência será sempre tenebroso, agitado e as "baleias azuis" continuarão a nos perseguir pelas esquinas da vida.

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