Foi naquele domingo em que realizava um
trabalho na universidade, que conheci Dilso, o professor de literatura. Logo
nas primeiras palavras partilhadas, demo-nos conta de nosso amor em comum para
com os felinos. Apesar de nunca mais tê-lo encontrado pessoalmente, posso dizer
que nossa amizade se solidificou por meio do mundo virtual e da intimidade para
com nossos gatinhos. Eu com meu Frajola; ele com a gata Sofia, uma elegante
senhorita de pelos azulados e olhar magnético.
Companheira inseparável de suas leituras
do Mestrado, Sofia acompanhou cada momento do futuro Mestre, os olhos
faiscantes sempre atentos, lendo junto com ele, ponderando, refletindo e
escutando os sons nas madrugadas silenciosas. As muitas fotos postadas nas
redes sociais pelo professor mostravam um companheirismo, uma parceria que ia
crescendo, se afinando e refinando a cada dia. Muitas vezes era possível ver
nitidamente a atenção do homem nas páginas deitadas ao colo, enquanto o olhar
da gata sabida se voltava para seu dono, contemplando-o em seu íntimo, lendo-o
a cada momento, decifrando-lhe a alma por inteiro.
E então, logo após a defesa da tese de
Mestrado de meu amigo, chegou o carnaval. Era esta a data que Sofia, sempre
sábia, havia escolhido para trazer a seu dono a mais difícil e penosa das
lições, porém a mais sublime e engrandecedora. Depois da missão cumprida, ela
sabia (os gatos sempre sabem) que era hora de partir, era hora de procurar outros
humanos para consertar, para afinar as imperfeições.
Foi na manhã daquele sábado que
partilharam os últimos momentos juntos, um breve diálogo sem palavras, em que
os olhos de ambos falaram um ao outro. Sofia saiu para passear. Não mais
voltaria, ao menos não em seu corpinho de pelagem azulada. No domingo pela
manhã, ao ligar o tablet, vejo a imagem estarrecedora que ainda agora me faz
chorar: Sofia dorme abraçada a um de seus livros naquela que será sua última
morada. O corpo destruído pelos cães parece ainda abrigar um sopro de vida, no
rosto um sorriso zombeteiro e tranquilo ao mesmo tempo, um sorriso de
serenidade, de amor.
Destroçado em seu âmago, meu amigo sente
raiva e indignação, não consegue entender o porquê. Espera pacientemente que o
pesadelo acabe, que acorde sonolento com Sofia em seus braços. Mas não, ela
decidira mesmo partir em busca de outros Universos, outras aventuras. Nessas
outras existências e dimensões que a aguardam, Sofia sabe que existe um número
(talvez infinito) de Dilsos esperando, esperando para serem afinados, para que
possam por meio dela entender a melodia mágica e grandiosa da vida.
E agora, depois de
tão dolorosa experiência, meu amigo segue tocando suas próprias melodias de
vida. Segue alquebrado, porém fortalecido, pois sabe e entende finalmente que
não é um sofredor pela perda de Sofia, mas um privilegiado por tê-la conhecido
e por ter sido escolhido por ela para ser salvo de suas imperfeições, de suas
desafinações de homem.
2 comentários:
Nossa, um texto lindíssimo e que está à altura da Sofia. Uma homenagem muito bonita e emocionante. Eu que vivi isso, senti em cada linha que o que passei foi sentido também por ti, que não é qualquer um (eu sei), mas foi entendido por alguém. Tive medo de ser mal entendido, afinal, quando perdemos alguém que amamos, sim, ficamos irracionais. Obrigado, amigo, novamente me fez chorar. Sofia sempre será minha pequena lenda, até mandei fazer uma foto com a inscrição "Eterna Sofia...", vou por sobre minha escrivaninha, pois quero que ela continue lendo comigo. Ah Sofia, minha afinadora de silêncio...
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