sábado, 15 de fevereiro de 2014

A vida é um jogo de dados



Certa vez, depois de voltar de um funeral, minha avó sentou-se à sombra de uma árvore e ficou a olhar pensativamente para o céu, enquanto tomava seu chimarrão. Depois de um tempo em silêncio, disse: "Tenho agora mais de 80 anos e desde criança escuto o padre dizer que a gente vai voltar um dia, mas nunca conheci ninguém que tenha voltado..." Me lembro que suas palavras me pegaram de surpresa e logo me pus a imaginar se tudo seria uma mentira, algo que os padres sempre falavam para tranquilizar as pessoas nos momentos de dor e de sofrimento.

Tempos depois a localidade onde eu então morava com meus pais e meu irmão foi assolada por uma seca de considerável duração. Muitos moradores ficaram sem água, alguns animais começaram a morrer por falta de pastagens, tudo foi secando, a paisagem quase sempre verde adquiria aos poucos uma cor amarronzada e feia. Algumas pessoas promoviam novenas e círculos de oração, fazendo promessas aos santos para que chovesse, porém nada acontecia. Com o passar dos dias, comecei a pensar naquilo tudo, a olhar para aquela secura e imaginar que talvez não houvesse nada afinal de contas. Deus não poderia ser para os adultos o mesmo que Papai Noel é para as crianças, um tipo de amigo imaginário, uma fantasia?

Os anos foram passando e fui questionando mais e mais as verdades prontas que nos ensinam a todos desde criança e analisando diferentes situações. Por que quando alguém à beira da morte se salvava as pessoas falavam que era um milagre de Deus? E quando rezavam e rezavam e mesmo assim a pessoa morria? Quando um avião cheio de passageiros caía e somente um deles sobrevivia também diziam que Deus tinha "cuidado" daquela pessoa. Mas e as outras centenas de pessoas mortas, por que Deus não "cuidou" delas? Será que não mereciam viver?

Continuei querendo saber sempre mais, busquei respostas em autores consagrados, cientistas e pesquisadores das mais variadas nacionalidades. Por fim, pesando os argumentos e as possibilidades contra e a favor, me dei conta do inevitável: não há lá no céu nenhum velhote de barbas brancas olhando para a Terra e cuidando de nós. Estamos sozinhos, estamos por nossa própria conta.

Penso que esse sentimento da maioria das pessoas, de crer em um ser superior e querer a sua proteção é a coisa mais natural do mundo, afinal saber que estamos sós e por nossa própria conta, nos assusta. Saber que quando atravessamos uma rua podemos ser atropelados e morrer assim, sem mais nem menos, assusta. Podemos simplesmente escorregar numa casca de banana, bater com a cabeça na calçada e pronto.

A crença em Deus fundamentalmente é isso: o desejo por proteção, o medo da morte e de suas possíveis consequências, muito provavelmente o medo de encarar uma realidade com a qual não estamos acostumados. De início, a descoberta de que estamos todos sozinhos e de que não há ninguém cuidando de nós também me assustou, depois me fez enxergar a vida e o mundo em todo seu esplendor, de uma forma que jamais imaginei que fosse possível. A não existência de um deus não significa que podemos tudo, muito pelo contrário; significa que precisamos zelar pela vida de cada ser vivo do planeta e espalhar o amor por onde quer que passemos e em cada atividade que façamos, pois a vida é frágil e única.

As atividades que fazemos ao longo de cada dia jamais se repetirão. Ainda que sejam as mesmas coisas, sempre haverá algo de diferente, de novo. Depois que me libertei das amarras representadas pela crença religiosa, o mundo se revelou para mim como eu nunca imaginei que fosse possível. Entendi afinal que a vida humana é frágil e que nossa existência é regulada unicamente pelo acaso, como se fosse uma loteria cósmica ou um jogo de dados. Não posso afirmar que nada reste de nós depois que morremos. De acordo com as recentes descobertas no campo da física quântica, tudo no Universo é composto de energia, inclusive nosso corpo, e a energia não pode ser destruída, apenas modificada. Então talvez na morte nosso corpo adquira outras propriedades e passe a fazer parte de um todo universal e autoconsciente, porém isso em nada depende da existência de um deus, trata-se simplesmente das leis físicas que regulam todo o Universo, pouco importa se acreditamos ou não.

2 comentários:

Anônimo disse...

tinha tudo pra ser um apenas mais um discurso cético ácido , mas a conclusão foi muito feliz . parabéns !

Anônimo disse...

Bela escrita. Parabéns!