quinta-feira, 26 de julho de 2012

O tênue limite entre ficção e realidade


Enquanto todos tentam viver suas vidas dentro de uma previsível normalidade, de repente o baque: mais um atirador irrompe ceifando vidas. O cenário não poderia ser mais emblemático, uma sala de cinema lotada. A violência fictícia do filme, realçada pelos efeitos 3D, fica ainda mais palpável e mortal. Salta da tela para a vida real, abreviando-a, abreviando os sonhos daqueles que ali estão. A cada episódio como este do Colorado, a pergunta que todos se fazem é: por quê?
A sociedade americana e seu estilo de vida, impostos ao resto do mundo via cinema, música, jogos eletrônicos e uma infinidade de outras formas, representa a essência daquilo que se conhece por capitalismo e por um individualismo extremado. A competição e a pressão para alcançar o sucesso pessoal e profissional parecem não ter limites. Nesse contexto insano, a ideia de que todos pertencemos a um grupo social ou comunidade fica esquecido e passa a valer a lei do “cada um por si”. Um levantamento recente apurou que cerca de 25% dos americanos moram sós. São cidades imensas, agregando multidões de solitários individualistas que encaram a vida como uma guerra pela sobrevivência. Ter sucesso na vida, prestígio, dinheiro e reconhecimento social são metas que devem ser atingidas a qualquer preço, literalmente. Alguns não suportam a pressão e desistem, cometem suicídio ou ainda optam por eliminar literalmente o maior número de “concorrentes” possível.
Torna-se algo revelador a constatação de que tais atos são comumente perpetrados por indivíduos da classe média, bem posicionados na escala social, com sólida formação acadêmica e geralmente possuidores de um QI acima da média. Talvez inconformados com sua condição, ao perceber que a vida não está seguindo o rumo esperado ou então que está demorando demais para chegarem ao topo, repentinamente decidem extrapolar, jogam tudo para o alto e cometem uma loucura. Nos dias que antecedem os massacres, muito provavelmente o limite entre a vida real e as tantas realidades fictícias experimentadas por meio de filmes ou jogos, desaparece. Ficção e realidade podem passar a ser uma mesma coisa, quando a primeira ocupa a mente das pessoas por tempo demais, tornando-se uma obsessão. Quase como um vulcão adormecido que fica lá, em hibernação, só aguardando o momento adequado para entrar em erupção.
Quando isso acontece, vidas são tiradas sempre de forma violenta e cruel, sem chances para fugas. Os massacres costumam ser cuidadosamente pensados para matar o maior número possível de pessoas. Na sociedade contemporânea, estamos habituados a sentir medo quando sozinhos, porém na companhia de um grande grupo ou multidão, o medo desaparece e passamos a sentir uma enganosa sensação de segurança. Um ambiente escuro e cheio de gente, como uma sala de cinema, pode ser o lugar ideal para dar vazão a todos os sentimentos de raiva e frustrações represadas numa mente desequilibrada e doentia.
Os vilões dos filmes, com suas máscaras assustadoras, sua maquiagem pesada e suas expressões de indiferença frente ao sofrimento alheio, podem sair da ficção e adentrar o mundo em que vivemos sem aviso. Para piorar ainda mais a situação, não há como prever quando ou onde acontecerá, muito menos que pessoas podem ter propensão para cometer tais barbaridades. Parece não haver um perfil padrão que possa vir a ser monitorado. O limite entre ficção e realidade desaparece gradativamente à medida que o mundo da virtualidade se amplia. Como já dizia a filósofa alemã Hannah Arendt, o inferno deixou de ser um lugar imaginário ou mitológico para ocupar o mundo real. O inferno pode estar bem ali, entre as árvores do parque, na rua que nos leva todo dia para o trabalho, num jardim florido e até numa sala de cinema.

Um comentário:

Sabrina R disse...

Quanto tempo que não passava por aqui, parabéns pelo blog. ^^
Tenho uma pergunta: em qual obra Hannah Arendt disse isso sobre o "inferno"?
E ainda, diante do teor do texto e do incidente que o motiva, tenho uma sugestão: os filmes de Michael Haneke.